sábado, 24 de maio de 2008

O nome dela era Rebeca

O nome dela era Rebeca e estava indócil no trânsito. Pudera. O filho,
aluno do ensino médio de uma escola, dita católica-progressista, acabara de ser sutilmente “retirado” da mesma, por menos de um ponto. Ele e mais 50 outros. Todo ano era a mesma coisa: 50 alunos eram excluídos, em nome do ensino inclusivo. O mote para as “retiradas sutis” era o vestibular. A tal escola ainda se fiava nesta “medição”, para justificar o êxito comercial de seu ensino.
- Isso é que é impunidade! Todo ano expurgam 50! Isso é fracasso escolar da escola e não do meu filho! – esbravejava ela, se dando conta de que o vestibular já estava falido desde seus tempos de menina.
Ainda no trânsito do Humaitá, Rebeca, mãe quarentona, muito bem apessoada, profissional de mão cheia – dona-de-casa, nem tanto... – deixava a invasão bárbara de pensamentos prosseguir. O tempo passava veloz nas ruas e assaltos de Botafogo (e adjacências) e Rebeca ponderava, em voz alta: - Ah! queria ver se fosse com os filhos deles... criar filhos, hoje em dia, não é fácil, não... você sai prá trabalhar e as crianças ficam em casa, muitas vezes, sem ninguém prá olhar. E lá está a maldita televisão passando – em qualquer horário – aquela programaçãozinha de quinta categoria! Depois dizem que a classificação indicativa é a volta da ditadura... tudo nesse país é a volta da ditadura! Ditadura é assistir à indústria milionária da violência e do erotismo precoce... da prostituição infantil, da gravidez aos 11 anos, da venda absurda de armas, da desestruturação familiar, da miséria aumentando nas ruas, do aliciamento de jovens e de crianças para o tráfico... isso sim é ditadura! Esbravejava ela, possessa, aos sete ventos... enquanto o guarda municipal aplicava-lhe uma multa, por dirigir com uma só mão, enquanto ela passava a terceira.
Rebeca não andava bem naqueles dias: o filho mais velho havia sido convidado a se retirar de uma escola progressista, de ensino médio “inclusivo”, por não ter a média necessária para passar no vestibular. A filha caçula, de seis anos, havia assistido – sem querer – à chamada, num dos intervalos da novela das seis, de um filme caliente (que haveria de passar depois das dez). A cena foi reproduzida por ela e por suas amiguinhas – com fidelidade máxima – usando Barbies sobre Kens e Kens sobre Barbies, numa impressionante fileira de casais de bonecos, que gemiam sons grotescos, enquanto se esfregavam. Foi uma imagem de forte impacto para Rebeca – de criação cristã e educação das mais éticas e respeitosas. Foi forte, difícil mesmo...
Rebeca, definitivamente, não estava bem. Não sabia porquê o marido de 50 anos havia se encantado pela jovem, 20 anos mais nova, de piercing no nariz e tatuagem na cintura, que trazia, em sua teia de encantamentos, máximas da nova ética feminina carioca: “1) A fila anda 2) Quem gosta de beleza interior é decorador 3) Tá casado, mas não tá morto. 4) não me importo em ser amante...”
Não dava ainda para entender porquê, ao invés de se construírem escolas, se construíam presídios. “Assassinos de infâncias!” Gritava ela – a essa altura completamente descontrolada –, ao lembrar das ricas temáticas das telenovelas, onde habitualmente as filhas detestam as mães que, por sua vez, detestam seus pais que, por sua vez, traem as mães que, por sua vez, envolvem-se em terríveis conspirações e escândalos.
- Será que não existem mais pessoas de boa-fé? Pessoas de paz?
Paz lembrava, também, a menina Gabriela, a tragédia do menino João, entre tantas outras... foi quando Rebeca, ao parar em um sinal fechado, pensou em Chico Buarque. Respirou mais aliviada. Sensação que durou pouco tempo, quando viu, já próximo, o pivete. Sentiu, afiada, a pontada no coração, pela sensação real de impotência, por não poder fazer cumprir o Estatuto da Criança e do Adolescente... – Um dos melhores do mundo! – berrou ela, assustando o pivete. Naquele exato momento, quando tudo parecia conspirar para sua profunda insatisfação, o telefone celular tocou. Como estava no trânsito, ponderou que seria melhor não atender. Como era mulher, ponderou um pouco mais. Atendeu.
- Mãe, nós te amamos! – disse, do outro lado da linha, a voz adorável dos filhos.
Não tardou e veio o complemento:
- Nós te amamos, mas não se atrase de novo, ta?
E então, a fila andou...


Karen Acioly - Revista O GLOBO - 22 de junho de 2007

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